Vivi a infância num lugar muito longe do centro de São Paulo, um lugar abandonado pelas letras dos poetas, amado por jornalistas de páginas policiais, aliás, longe do centro de tudo. E para piorar, no silêncio da timidez, longe até de mim mesmo.
Mas que ninguém duvide, longe nem sempre quer dizer triste. Triste nem sempre quer dizer longe.
Um tempo em que pensava que o planeta se chamava Terra porque as ruas não tinham asfalto e as ladeiras pareciam nuvens deslizando sobre os nossos pés.
Dias coloridos para crianças que não imaginavam o futuro em preto e branco.
Quando me alistei na escola (sim, escola naquela época da ditadura tinha ares de quartel) uma outra paixão além das ruas se apossou do coração, a cartilha "Caminho suave", o livro sagrado dos dias sem milagres.
Lembro-me das letras do alfabeto brincando de esconde-esconde, e eu de pega-pega, e as palavras disbicando como pipa diante dos meus olhos, e aprender a ler foi ficando tão mágico como jogar bolinha de gude depois do café da tarde.
Não me recordo da primeira palavra que aprendi a escrever no caderno, se um dia lembrar quero tatuá-la no peito, para que nunca esqueça que amar de verdade, se aprende brincando. Aprender a ler só não foi melhor do que meu primeiro beijo.
Com o tempo, aprender a ler me ensinou a enxergar -que por incrível que pareça são duas coisas diferentes. É como comprar água no mercado e tomar água da fonte.É. Porque apesar da vida dura e simples que insistia em bater em nossas portas, havia uma riqueza muito maior do que pé-de-moleque, tubaína, gibi, maria mole, pão com mortadela, no meu quintal: Livros.
Um pai que trabalhava como um escravo para sustentar os filhos mantinha uma sala repleta de livros, que lia sempre, para que a vida não doesse tanto.
Nesse tempo, Speed Racer e meu pai eram os únicos heróis que faziam sentido pra mim.
Seguíamos assim, feito poemas do poeta Pablo Neruda: o destino nos maltratando e a literatura como merthiolate curando nossos feridas. A Bela dormecida e Ali Babá sabem do que estou falando.
E os dias seguiram assim, como um conto de fadas repleto de lobo maus. Eu, João sem Maria, como um gato sem botas, só quis assoprar minhas lembranças.
Morando num lugar esquecido pelo mundo descobri que o centro da cidade ficava na minha rua, e que o mundo todo cabia em minhas mãos quando abria um livro.
Como já disse, não lembro a primeira palavra que aprendi a escrever, mas gostaria que fosse:
"Abre-te-sésamo!"
Não canso de ler esse texto e toda vez que o leio me emociono. É lindo demais!
ResponderExcluirObrigada por compartilhar essa maravilha!
Abraços
de repente, estive vivendo sua infância... mais do q a importância da literatura na vida de quem não se contenta somente com aquilo que a vista alcança, vc mostrou, singelamente, a força q vc teve pra mudar seu mundo, pra chegar ao seu centro da cidade!lindo texto!
ResponderExcluirSalve, poeta
ResponderExcluirMaravilha de texto, cala fundo...
P.S: covardia do caralho o que tão fazendo com os manos lá na cracolândia, na "revitalização"... tratam GENTE como lixo, política nojenta de "higienização" e instrumentalização da especulação imobiliária. Bando de abutres da porra!
Desculpe o desabafo,
Abraços, Fabio (Campinas-SP)